Eu vejo reincidente a idéia de que temos defeitos e
que precisamos combatê-los. Não vejo desta forma. Penso que observar-se pelo
panorama de “defeitos” e “virtudes” é aceitar um padrão externo pré-concebido
que baseia-se no julgamento (julgamento que o ser humano não está apto a
fazer); julgamento este que baseia-se em preconceitos. Ao mesmo tempo em que se
defende a tese do “somos perfeitos pois somos divinos” (e é nessa que
acredito), estamos sempre nos incentivando a desacreditar dela, a
submetermo-nos ao julgamento leviano de nós mesmos e a tornarmo-nos nossos
próprios inimigos, combatendo partes do nosso ser.
Estamos buscando, até mesmo dentro de nós, não a
unidade, mas a separação. Separar, no fundo, o que “convém” do que “não
convém”. E isso, saibamos, implica em renunciar à nossa integridade, trocá-la
por ‘meio ser’, por ser apenas a parte que convém e com a qual as pessoas e nós
mesmos achamos fácil lidar. Integridade essencial passa longe disso. Vida plena
também passa longe. Superação e desenvolvimento então, nem se fala... E
autoconhecimento pode ser esquecido diante dessa proposta, que não visa
reconhecer-se, reintegrar-se e realinhar-se, mas podar-se, retalhar-se,
limitar-se. Combater características individuais é combater a si mesmo, e fazer
de seu ser verdadeiro o inimigo e, consequentemente, viver em conflito interno,
na negação de si próprio, afastando-se de sua integridade e da sua essência.
Não seria muita arrogância acreditarmos que somos
capazes de olhar para uma obra divina e dizer, simplesmente, “Deus errou, vamos
consertar”? Então somos criadores melhores e mais sábios? Bom, isso é tema para
uma longa reflexão, mas vale a pena deixar o estímulo a ela antes de voltar ao
tema de hoje.
Não estamos aqui para atender a expectativas sociais,
mas para o desenvolvimento da consciência através da vida plena, que nos
oferece infinitas possibilidades. Mas o ser humano, ignorante de si mesmo e do
universo e acomodado em padrões fáceis que não exigem esforço, aceita não
fazê-lo. Aceitar ser aquilo que é dá trabalho, primeiro é preciso saber quem
somos, é preciso saber para que serve o que somos, onde e como se encaixa o que
somos; em suma, encontrar a nós mesmos e descobrir nosso lugar no mundo. Isso
exige pensar fora da caixa, exige a disposição de fazer adaptações, dar grandes
cambalhotas por sobre nossas crenças, tornar-se tão diferente daquilo que a
máquina social produz e cospe que nos sentimos nus diante de tantos olhares
surpresos.
Não acredito que somos defeituosos e que precisamos
brigar contra nós mesmos buscando mascarar uma suposta “imperfeição original”.
Acredito que essa idéia seja fruto da absoluta falta de autoconhecimento e
respeito pelo próximo e por nós mesmos que aprendemos a cultivar juntamente com
os valores sociais sobre o que “convém” e “não convém” ser. Acredito (e vejo
isso através da minha experiência com a vida e as pessoas) que na medida em que
o autoconhecimento chega, passamos a identificar que os “defeitos de
fabricação” oriundos dos “erros de Deus” são talentos inexplorados, dons sem
direcionamento, características deixadas no piloto automático, aspectos socialmente
excluídos por preconceitos infundados; mas que, diante da disposição de
transcender a limitação da mente e dos hábitos, tornam-se uma parte luminosa da
nossa integridade, enriquecendo a consciência com um brilho mais forte. “Defeitos”
caem por terra, juntamente com o conceito sobre o que é “defeito”, diante do
conhecimento verdadeiro, que ultrapassa a pobreza das convenções sociais.
Um “defeito”, numa máquina, é uma peça quebrada que
precisa ser substituída – não por uma peça diferente, mas por uma peça igual –
ou uma peça que está desencaixada, mal colocada, e por isso não funciona em
harmonia com o conjunto. Se observarmos por esta perspectiva, um “defeito” não
é algo que precisa ser retirado, pois na falta de uma peça a máquina não
funciona; é algo que precisa ser ajustado, alinhado ao conjunto e funcionar
adequadamente. Então, do ponto de vista em que estou, não há uma “imperfeição
original”, um “defeito de fabricação”, uma “parte podre” que deve ser combatida.
Há aspectos de nossa integridade que carecem de entendimento, de aplicação
correta, de ajuste ao conjunto. Somos perfeitos. Apenas não sabemos o que fazer
com toda a gama de perfeição que carregamos, pois não aprendemos a lidar com
ela.
ABENÇOADOS SEJAM!
Corvo Negro