quarta-feira, 24 de junho de 2015

AMOR É AMOR

Amor Ágape, amor Eros, amor de irmãos, amor de pai, de mãe, de amigo, de amante. A gente fala muito e repete muito que tem muitos tipos de amor. Acredito que existam muitas formas de amar, mas amor é amor. O sentimento é sempre o mesmo, o que muda é o que desejamos fazer com ele, de que forma escolhemos manifestá-lo, experimentá-lo, direcioná-lo.

Amor Eros? Talvez seja um nome mais polido para tesão, que pode fazer parte (ou não) da forma como você expressa e experimenta o amor, mas que não é amor. Da mesma forma que o nosso desejo ou a nossa necessidade de posse sobre uma pessoa também não é amor. Da mesma forma que a vontade de contato físico não é amor. Da mesma forma que a dependência emocional de alguém não é amor.

Em todas as formas de expressar e experimentar aquilo que chamamos de amor, muitas vezes está apenas o reflexo das nossas doenças emocionais. Pais e mães que chamam de amor sua necessidade de controle ou sentimento de posse sobre os filhos, irmãos que chamam de amor sua disputa por aprovação, amantes que chamam de amor a necessidade por tapar o buraco existencial com a energia do outro ou a carência, escravos sexuais que chamam de amor o uso do corpo do outro para a satisfação de suas compulsões.

O que é amor, então? Amor é amor. É aquilo que você sente quando olha para alguém e tudo o que você deseja é que aquele ser exista, e você agradece porque ele existe e admira sua existência. Não reclama porque ele não foi feito sob medida para suas preferências e suas lacunas, não acha o fim do mundo que ele ame outras pessoas, não precisa que ele seja diferente, não necessita consumi-lo até esgotá-lo. Você simplesmente agradece porque ele é e está, e não deseja que ele esteja lá PARA você, mas deseja estar lá COM ele. E só deseja a ele tudo o que ele deseja para si mesmo.

Abençoados sejam!

Lara Félix

sexta-feira, 24 de abril de 2015

O PODER DAS EMOÇÕES “RUINS”

É isso mesmo. Sentimentos como raiva, revolta, indignação, são poderosos e têm um grande potencial transformador. E sim, BENÉFICO!


Vivemos numa cultura que aplaude a atitude da ovelha e repudia a atitude do leão, e por isso condenamos nossas emoções e as escondemos ou reprimimos, ao invés de aprender a lidar com elas. Essa é uma fórmula de autoboicote também. O “X” da questão não é o sentimento, mas o que fazemos com ele. E, como não aprendemos jamais o que fazer com os sentimentos “feios”, geralmente fazemos grandes burradas, pois, seja
escondendo, reprimindo ou extravasando, estamos sujeitos ao seu domínio e não somos capazes de direcioná-lo.


Um bom exemplo disso são os monges tibetanos, que temos como exemplos de serenidade, mas que são tão humanos quanto nós. Eles não chegam iluminados aos seus monastérios, com “altas patentes” de sabedoria. Eles começam exatamente aprendendo, desde o mais baixo patamar, a lidar consigo mesmo, com seus sentimentos, e a direcionar-se, a desenvolver a lucidez que um dia lhes trará a iluminação. E um belo dia, lá está o aspirante a monge terminando de lavar com uma escova os dez quilômetros de chão do templo, quando chega o bam-bam-bam monástico, olha para sua expressão de cansaço diante daquele salão todo limpo e escovado, e lhe diz que ele é um incompetente, que não serve nem para lavar o chão, e que jamais conseguirá alçar as grandes responsabilidades de um mestre. É claro que ele fica com raiva, com a mesma raiva que todo ser humano sente ao ser subestimado e ao ver seu esforço ser tripudiado. E isso se repetirá algumas ou muitas vezes. Mas ele não pode mandar o mestre tomar naquele lugar, nem lhe dar um soco no nariz, nem se vingar dele. Ele terá de aprender o que fazer com sua raiva para dar o troco naquela situação sem agredir seu mestre. E sentirá essa raiva até transformá-la na força motivadora que ele precisa para sua superação até que, um belo dia, dando o melhor de si para aquilo que está fazendo e jogando toda a sua raiva no escovão com que esfrega impecavelmente o chão, ele verá o mestre chegar ao salão e observar não um semblante de cansaço, mas um semblante de contemplação e de satisfação pelo resultado do esforço que fez. E, então, ele ouvirá do mestre “Eu estava enganado, talvez você sirva para limpar o chão”. Mas neste momento, ele já saberá que sua raiva deve ser usada contra suas limitações e as limitações do cotidiano... E isso o conduzirá ao próximo patamar.


Tem certos momentos em que saber direcionar a raiva, a agressividade, a revolta, pode ser um fator decisivo na determinação de como será o resto da nossa vida. Tem certos momentos em que a atitude de conformismo e passividade da ovelha é um golpe mortal na nossa integridade e no nosso caminho. Não existem sentimentos “maus”, existem más escolhas sobre o que fazer com eles, que podem causar prejuízos aos outros, ao nosso meio e a nós mesmos, mas elas são feitas por nos recusarmos a manejá-los, por não desejarmos nos familiarizar com seus mecanismos e, consequentemente, sermos dominados por eles ao invés de direcioná-los. Sábios monges tibetanos...

Abençoados Sejam!

Corvo negro

sábado, 18 de abril de 2015

A PIZZA DA SUA VIDA

Imagine que, uma vez a cada ciclo de vida que se encerra, a Vida (em pessoa!) convida você para comemorar com uma pizza. Ela vem cortada em vários pedaços, um de cada sabor: relacionamento, saúde, aprendizado, espiritualidade, realizações, conquistas, superações, desenvolvimento... Ela sempre lhe oferece a pizza e fica com um pedaço só – e você tem o direito de saborear todos os outros. Você escolheria apenas um sabor (sempre o mesmo sabor) e deixaria os outros na mesa? Você ficaria lamentando pelo pedaço que a vida comeu e deixaria os outros na mesa?


Mas a gente faz isso, e faz muito, ao longo da vida... Um bom exemplo disso é a importância exacerbada que em algumas fases da vida damos a uma só coisa, seja ela o status, um relacionamento, ou qualquer outra. A gente fica muitas vezes comendo uma só fatia da vida anos a fio, ignorando todos os outros sabores, como se nada importasse no mundo além daquilo, como se fosse a única coisa que a vida tem a oferecer, e se esquece de saborear tantas e tantas coisas que a vida nos dá, imaginando que tudo isso não tem graça nem valor, mesmo sem experimentar. Ou, por outra, ficamos ali, lamentando pelo pedaço que a vida comeu e não quis nos oferecer naquele momento, e deixando apodrecer todos os outros que poderiam nos alimentar porque... Simplesmente porque um pedaço está faltando! Como se uma vida completa não fosse a pizza inteira, mas só aquele pedaço.

Uma vida completa é uma pizza inteira com tantos sabores quanto for possível, com tantas fatias quantas forem imagináveis. Nem sempre a gente tem a pizza inteira, às vezes a vida come um pedaço para nos obrigar a experimentar os outros sabores. Às vezes a gente só come um pedaço a vida inteira e nunca percebe quantas outras possibilidades já temos ali, à mesa, só por termos nascido. A questão é que todos nós queremos uma vida plena, mas dificilmente aceitamos a pizza inteira. Nós só queremos o pedaço que já saturou e viciou nosso paladar, ou então o pedaço que não está disponível no momento. E dispensamos a pizza! E dispensamos a vida!


Parar de experimentar é parar de viver. Alimentar apenas uma centelha da nossa consciência e das nossas possibilidades é recusar-se a viver plenamente. Convido cada um de vocês a olhar para sua pizza – não para o mesmo pedaço, nem para o pedaço que falta, mas para a pizza inteira. E a não se contentar só em olhar... Mas em ceder à curiosidade de saborear cada pedaço!

Abençoados Sejam!

Corvo negro

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A IMPERFEIÇÃO DOS PERFEITOS

Eu vejo reincidente a idéia de que temos defeitos e que precisamos combatê-los. Não vejo desta forma. Penso que observar-se pelo panorama de “defeitos” e “virtudes” é aceitar um padrão externo pré-concebido que baseia-se no julgamento (julgamento que o ser humano não está apto a fazer); julgamento este que baseia-se em preconceitos. Ao mesmo tempo em que se defende a tese do “somos perfeitos pois somos divinos” (e é nessa que acredito), estamos sempre nos incentivando a desacreditar dela, a submetermo-nos ao julgamento leviano de nós mesmos e a tornarmo-nos nossos próprios inimigos, combatendo partes do nosso ser.




Estamos buscando, até mesmo dentro de nós, não a unidade, mas a separação. Separar, no fundo, o que “convém” do que “não convém”. E isso, saibamos, implica em renunciar à nossa integridade, trocá-la por ‘meio ser’, por ser apenas a parte que convém e com a qual as pessoas e nós mesmos achamos fácil lidar. Integridade essencial passa longe disso. Vida plena também passa longe. Superação e desenvolvimento então, nem se fala... E autoconhecimento pode ser esquecido diante dessa proposta, que não visa reconhecer-se, reintegrar-se e realinhar-se, mas podar-se, retalhar-se, limitar-se. Combater características individuais é combater a si mesmo, e fazer de seu ser verdadeiro o inimigo e, consequentemente, viver em conflito interno, na negação de si próprio, afastando-se de sua integridade e da sua essência.

Não seria muita arrogância acreditarmos que somos capazes de olhar para uma obra divina e dizer, simplesmente, “Deus errou, vamos consertar”? Então somos criadores melhores e mais sábios? Bom, isso é tema para uma longa reflexão, mas vale a pena deixar o estímulo a ela antes de voltar ao tema de hoje.

Não estamos aqui para atender a expectativas sociais, mas para o desenvolvimento da consciência através da vida plena, que nos oferece infinitas possibilidades. Mas o ser humano, ignorante de si mesmo e do universo e acomodado em padrões fáceis que não exigem esforço, aceita não fazê-lo. Aceitar ser aquilo que é dá trabalho, primeiro é preciso saber quem somos, é preciso saber para que serve o que somos, onde e como se encaixa o que somos; em suma, encontrar a nós mesmos e descobrir nosso lugar no mundo. Isso exige pensar fora da caixa, exige a disposição de fazer adaptações, dar grandes cambalhotas por sobre nossas crenças, tornar-se tão diferente daquilo que a máquina social produz e cospe que nos sentimos nus diante de tantos olhares surpresos.

Não acredito que somos defeituosos e que precisamos brigar contra nós mesmos buscando mascarar uma suposta “imperfeição original”. Acredito que essa idéia seja fruto da absoluta falta de autoconhecimento e respeito pelo próximo e por nós mesmos que aprendemos a cultivar juntamente com os valores sociais sobre o que “convém” e “não convém” ser. Acredito (e vejo isso através da minha experiência com a vida e as pessoas) que na medida em que o autoconhecimento chega, passamos a identificar que os “defeitos de fabricação” oriundos dos “erros de Deus” são talentos inexplorados, dons sem direcionamento, características deixadas no piloto automático, aspectos socialmente excluídos por preconceitos infundados; mas que, diante da disposição de transcender a limitação da mente e dos hábitos, tornam-se uma parte luminosa da nossa integridade, enriquecendo a consciência com um brilho mais forte. “Defeitos” caem por terra, juntamente com o conceito sobre o que é “defeito”, diante do conhecimento verdadeiro, que ultrapassa a pobreza das convenções sociais.


Um “defeito”, numa máquina, é uma peça quebrada que precisa ser substituída – não por uma peça diferente, mas por uma peça igual – ou uma peça que está desencaixada, mal colocada, e por isso não funciona em harmonia com o conjunto. Se observarmos por esta perspectiva, um “defeito” não é algo que precisa ser retirado, pois na falta de uma peça a máquina não funciona; é algo que precisa ser ajustado, alinhado ao conjunto e funcionar adequadamente. Então, do ponto de vista em que estou, não há uma “imperfeição original”, um “defeito de fabricação”, uma “parte podre” que deve ser combatida. Há aspectos de nossa integridade que carecem de entendimento, de aplicação correta, de ajuste ao conjunto. Somos perfeitos. Apenas não sabemos o que fazer com toda a gama de perfeição que carregamos, pois não aprendemos a lidar com ela.

ABENÇOADOS SEJAM!

Corvo Negro

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

LIBERDADE DE QUÊ?

Bom, a gente defende a liberdade, busca a liberdade, adora liberdade. Liberdade de pensamento, liberdade de ir e vir, liberdade de expressão, liberdade de ser, liberdade de escolha, liberdade... Mas o que é a liberdade? Ela é ilimitada? Ela é real?


Claro que todo mundo já ouviu dizer que liberdade é responsabilidade e que uma não pode existir sem a outra, esse é um dos jargões mais repetidos da humanidade, se não for o mais repetido. Mas tenho visto ultimamente uma discussão muito profunda, embora tímida, em vários pequenos grupos sobre o que é a liberdade, onde ela começa ou termina. E isso veio à tona através do tema da liberdade religiosa que jamais foi respeitada e através da polêmica da liberdade de expressão que muitas vezes agride a liberdade alheia e promove seu cerceamento através da apologia a preconceitos e exclusões.

Bom, em primeiro lugar, na minha forma de ver e sentir este mundo a liberdade é quase uma impossibilidade, salvo raríssimas exceções. Para ter a liberdade de ser você mesmo, você teria que renunciar a todos os tipos de moldes que lhe foram impostos desde antes de você nascer: culturais, morais, familiares, publicitários, religiosos, sexuais. Aí sim você teria liberdade para descobrir quem você é e poder, finalmente, ser você mesmo e se expressar. Mas para isso você precisaria pensar por si mesmo, ter liberdade ideológica, intelectual, buscar experiências próprias e acreditar em suas próprias verdades. Você teria de ser, do princípio ao fim, livre para escolher tudo. Então esbarraríamos nas mesmas rupturas necessárias para ser você mesmo. E provavelmente essas rupturas causariam incômodo, desconforto, rejeição por parte dos demais e isso tiraria toda a sua liberdade de movimento, de ir e vir, de expressão. Você poderia ser rotulado com uma tonelada de adjetivos que o fariam parecer perigoso, inferior ou repugnante. Você poderia ser excluído de muitas formas. Você poderia ser criticado em todas as coisas, pouco importando se estavam certas ou erradas, pois o que viesse de você seria de todo ruim. Assumir a responsabilidade para ser livre implica nisso também, entre tantas coisas: saber que será assim e ser livre o suficiente para continuar mesmo assim.

Mas o que acontece é que somos moldados e domesticados, padronizados neste ou naquele modelo, a ou b. Poucas pessoas conseguem identificar um fluxo de múltiplas direções e possibilidades, poucas pessoas conseguem sentir a direção que seu próprio coração aponta, e como ninguém rema contra a correnteza e sai impune, estamos todos no mesmo barco: o barco dos sem liberdade. Mas nem todos neste barco acreditam no catolicismo ou no islamismo. Nem todos são brancos ou negros. Nem todos são ricos ou pobres. E então, um deles se levanta lá do outro lado do barco, hasteando a bandeira do seu opressor, e grita: “Ei, você aí de camiseta listrada! Você deve morrer e ir pro inferno seu pecador miserável!”, ou “Seu pele-verde, você não tem o direito de estar aqui!” – e ambos acham que são livres por estarem aprisionando a outros numa cela fora de seu espaço. Não percebem que têm menos liberdade do que a maioria dos demais. Que são escravos de teorias, verdades, opiniões, conceitos, valores e bandeiras que sequer sabem por quê defendem, quem os criou. Não são donos de sua liberdade de pensamento, de sua liberdade de ação. Não são donos de si mesmos. Querem liberdade de expressão para expressar ideologias alheias que lhes foram impostas e sobre as quais nunca pensaram, crenças nas quais jamais acreditaram realmente porque não nasceram deles mesmos e sim de outros que vieram antes. Querem liberdade para submeterem-se a tudo o que os restringe. Seu mundo será mais seguro se os pontos de vista diferentes não os obrigarem a pensar e sair da zona de conforto, da salinha acolchoada e sem janelas.

Mas acreditam que são livres. Acreditam que estão SE expressando. Bom seria se, ao invés de defenderem com unhas e dentes, bombas e armas, ofensas e calúnias, sua liberdade de escolher não ter liberdade (porque isso também é uma escolha), estivessem simplesmente admirando a liberdade alheia e abrindo portas – portas invisíveis que só o coração humano reconhece pois já sonhou com elas, em detrimento da mente que as renega – para que alguma liberdade pudesse realmente acontecer. De dentro para fora. Depois de fora para dentro.



ABENÇOADOS SEJAM OS LIVRES – OS LOUCOS QUE OUSAM SER! 
OS QUE NÃO TÊM BANDEIRA, OS QUE NÃO TÊM MENTOR, OS QUE NÃO TÊM PATRÃO.

Corvo Negro

sábado, 24 de janeiro de 2015

O CERTO, O JUSTO E O POSSÍVEL

Pois é, neste universo tão sincrônico, existem algumas coisas aparentemente tão desalinhadas que não é possível compreender num primeiro olhar. A gente cresce ouvindo as histórias dos contos de fadas e, inconscientemente, acaba esperando um final feliz para todas as situações. E nem sempre é assim. Aliás, a verdadeira forma do tal “final feliz” nos é desconhecida, posto que acabamos acreditando que um final feliz é aquele em que todos ficam satisfeitos de imediato – menos, é claro, os vilões da história. Mas a vida é mais criativa do que as histórias dos contos de fadas e seus autores, e ela também não acaba no desfecho de um conflito ou dilema, muito menos com um “e viveram felizes para sempre”, pois muitas outras histórias ainda serão escritas e muitos outros enredos ainda se desenrolarão com os mesmos personagens.


Muitas vezes, um capítulo não acaba com o “e viveram felizes para sempre” coroando mocinhos e punindo vilões, com uma grande confraternização. A vida real não é feita de mocinhos e vilões, de bem e mal. Ela é uma toalha de crochê tecida com estes dois fios entrelaçados, que só chega ao final depois de muitas e muitas voltas e nós. Muitas vezes, na vida real, por se tentar fazer o que é certo não se consegue o resultado que é justo; por se tentar seguir o que é justo não fazemos o que é certo; vivemos simplesmente a história possível, o desfecho aparente de um enredo que continua a ser tramado mesmo que não estejamos vendo. A vida não visa premiar e punir, ela só quer movimentar, ela só deseja fermentar e crescer para transformar. É por isso que muitas vezes o bandido parece ganhar e o mocinho parece perder – mas a verdade é que a história não acaba com o fim de um capítulo, e cada um dos dois é um livro em si mesmo e ambos jamais leram um ao outro, e que a reunião de ambos é um mero capítulo chamado “oportunidade”, mas ao final deste capítulo os dois livros prosseguem com suas histórias. Algumas vezes apostando no que parece certo, algumas vezes deixando escapar o que parece justo, algumas vezes tendo que aceitar que o desfecho possível para aquele momento não é o desfecho definitivo: a vida continua. Ela vai nos dando fios de oportunidade e entrelaçando nossas escolhas dentro de um desenho que nos é totalmente desconhecido.


A gente muitas vezes se revolta com essa equação matemática misteriosa que a vida aplica para determinar se um capítulo terá o desfecho certo, o resultado justo ou a conclusão possível. Nós não conhecemos o livro todo ainda, não sabemos ainda quantas voltas e nós a toalha de crochê precisa dar, e não lemos o livro individual de todos os personagens envolvidos na trama. Mas o fato é que, quer os capítulos que nos afligem caminhem para o que é certo, para o que é justo ou para o que é possível, a toalha de crochê da nossa história pessoal e da nossa história coletiva resulta num trabalho impecável, e somente quem segura a agulha para tecê-la é capaz de ter a visão panorâmica do contexto geral em que todos os livros se encaixam, em que todos os desfechos dão origem a novas histórias, e saber, de antemão, em que forma resultará o trabalho ao ser concluído, pois independentemente de haverem mocinhos e bandidos do nosso ponto de vista parcial, a mão que tece enxerga a todos e a cada um sob o aspecto de sua real integridade. Nem sempre o que é certo é justo, nem sempre o que é justo é certo, nem sempre o certo e o justo são possíveis dentro da trama – eles poderiam deformá-la e fazer com que o desenho fugisse da perfeição original. Isso é tudo o que sabemos sobre todas as histórias que vivemos.


Abençoados sejam!

Corvo Negro

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O SAGRADO DIREITO AO FODA-SE

Sim, nada é mais libertador do que poder dar um “foda-se” para aquilo que nos oprime, intimida, sufoca, rotula, massifica, robotiza, exclui, bloqueia. Este é um direito sagrado que nos garante o livre arbítrio – dádiva divina. O direito de fazer nossas próprias escolhas, traçar nosso próprio caminho, fazer aquilo que nos realiza, ser quem somos, sem interferências, muito menos impositivas.


Nada mais sagrado do que o direito ao “foda-se” para as pressões e cobranças naquela tarde de sol em que você só precisa mesmo parar e sentir a brisa, ficar em silêncio e se reenergizar para tornar suas responsabilidades possíveis de serem cumpridas.

Nada mais sagrado do que o direito ao “foda-se” diante das exigências alheias que fazem adulterar seu caminho e distanciam de sua essência verdadeira.

Mas existe um limite para o “foda-se” que, quando ultrapassado, elimina seu valor sagrado e torna-o profano, vazio. O “foda-se” sagrado é um gatilho para libertar nosso universo interior daquilo que nele não cabe. Ele pode e deve ser usado a nosso favor, mas jamais contra o próximo. Ele é uma arma de libertação pessoal, não de guerra. Uma arma de pacificação interior.

Se realmente desejamos a libertação e a pacificação, o “foda-se” não pode ser usado como forma de agressão, de opressão, de repúdio, de exclusão ou de omissão. Ele não pode substituir o “me desculpe”, o “sinto muito”, o “obrigado”. Ele não pode ser uma forma orgulhosa ou irresponsável de esquivar-nos daquilo que nos cabe. Do reconhecimento pelo outro e do reconhecimento de nós mesmos.

Há uma diferença entre o “foda-se” por direito e o “foda-se” por inconsequência, por irresponsabilidade, por negligência. É que um é tomado com consciência e a favor do nosso espaço sagrado, gerando alívio, e o outro, é cuspido com soberba contra as pessoas ao nosso redor, gerando pressão.


Realmente, ninguém deve nada a ninguém, mas ainda devemos a nós mesmos relações de gratidão, de reconhecimento, tratadas com leveza e maturidade, com respeito ao espaço de cada um e ao direito de cada um. Ainda devemos a nós mesmos a capacidade de dar ao próximo apenas aquilo que dele desejamos receber.

Abençoados sejam!

Corvo Negro

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

SOBRE SEMEADURAS E COLHEITAS

Estamos na maior crise de falta de água que este país já enfrentou. Alguns reservatórios de abastecimento chegam a menos de 6% da capacidade de armazenamento. Em São Paulo, a crise foi amenizada pela reutilização do esgoto tratado, acrescido de uma quantidade maior de cloro. As pessoas sentem uma diferença significativa no gosto da água, mas é a água disponível – e está disponível para um consumo menor através de redutores de pressão. Assisti a uma entrevista com um representante da SABESP (empresa responsável pela água e esgoto no Estado de São Paulo) em que, ao ser indagado sobre os rumos da água, ele diz o óbvio: que a normalização dos níveis dos reservatórios depende de obras e não apenas de chuvas, que estas obras levarão pelo menos 6 anos para serem concluídas, que não podemos esperar que o abastecimento volte ao normal, sem os redutores de pressão, NUNCA MAIS. Que os especialistas estão torcendo para que as chuvas de verão encham os reservatórios pelo menos até os 10% para que seja possível haver distribuição de água até o inverno mas que, na época da estiagem, viveremos novamente a falta de água.

(E ainda assim voltamos a lavar as calçadas com a mangueira como se nada tivesse acontecido, como se nada estivesse para acontecer...)

Poucos compreendem a relação entre nosso estilo de vida e a falta de água, a maioria das pessoas acredita que basta chover e que, se estamos sem água, é porque passamos por uma forte estiagem em 2014. Mas o fato é que estamos sem água porque desmatamos inúmeras áreas cheias de nascentes que secaram em função do desmatamento. Para plantar gigantescas áreas de monocultura, para criar gado, para extrair madeira. Passamos tratores pela terra eliminando as curvas de nível, retiramos a vegetação nativa, destruímos cursos naturais de água. E tudo isso para oferecer a possibilidade de um consumo exagerado, que alimenta um mercado frenético, uma forma de economia insustentável que não leva em consideração fatores como esse: a necessidade de florestas, de água, de preservação dos recursos naturais sem os quais morremos. 

2015 é o “ano da colheita” em que recebemos o equivalente àquilo que semeamos até agora. Falando em semeaduras e colheitas, a crise de água é uma das colheitas da nossa semeadura. Semeamos inconsequência, inconsciência, e estamos colhendo sede. Uma colheita que todos nós fazemos, juntos, enquanto espécie. Momento de colher para, quem sabe em 2016, ano da mudança, se estivermos ainda vivos e fortes, reavaliarmos nossa semeadura e mudarmos nossas prioridades já que, para agora, para 2015, não dá mais tempo. Agora é colher o que plantamos, sem reclamar.


Abençoados sejam!
Corvo Negro

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

AS FILOSOFIAS DA VACA

Esse tema pede uma linguagem mais descontraída, afinal vamos falar sobre “cagar e andar”, a famosa “filosofia da vaca”. Tenho algumas leituras sobre a filosofia da vaca que gostaria de compartilhar para refletirmos sobre a profundidade que isso abrange em vários aspectos – e ela está no nosso inconsciente, no nosso subconsciente, quiçá no nosso consciente de alguma forma.

Tem o famoso “cagando e andando” de quem faz burradas, comete erros e não se importa com isso, e essa, como todas as moedas, tem seus dois lados. Por um lado é muito construtivo “cagar e andar” no sentido de não se importar em errar, de não ter orgulho o suficiente para ter medo ou vergonha de errar porque isso faz parte da vida, e continuar caminhando mesmo assim, sem se impor travas, buscando novas experiências e novos lugares. Maravilhoso.


Por outro lado, “cagar e andar” também pode significar que não nos importamos em nada com nossas falhas e não nos preocupamos em reavaliar nossas ações, aprender com nossos erros, buscar novas alternativas, e não estamos dispostos a crescer com nossas experiências. Cagamos, andamos e deixamos feder no nariz de quem estiver por ali, sem reservas.

Tem também um outro “cagando e andando”, que é o que eu mais uso, que se aplica no sentido de que estarmos “cagando de medo” não nos impede de superar, de prosseguir, de tentar, de experimentar, e continuamos caminhando apesar do medo, das inseguranças, das incertezas. Não nos deixamos paralisar diante das circunstâncias adversas ou intimidar diante do futuro. Admito que, das filosofias da vaca, essa é a minha preferida...

Tem aqueles que vivem “cagando e andando” no sentido de estarem sempre parando para depositar algo seu e partindo, deixando ali apenas uma idéia, um campo fértil, um sentimento, uma lembrança, uma lição. São pérolas-vaca, que passam e fazem as coisas germinarem. Às vezes um alimento, às vezes uma erva daninha que incomoda, mas sempre fazem a gente parar para observar o terreno da nossa vida com mais atenção.

De qualquer forma, cocô de vaca é fertilizante e, assim como ele, nossas cagadas também fertilizam nossos conhecimentos, nossa sabedoria, nossa experiência, nossa história, e podem gerar flores e alimento para nosso espírito se pararmos para perceber. Assim, “cagar e andar” errando e aceitando errar, “cagar e andar” sentindo medo e aceitando enfrentar, fortalece e enriquece nosso espírito, traz crescimento, faz a vida prosperar e abrir novos espaços. Principalmente quando a gente escolhe conscientemente “cagar e andar” da forma mais produtiva e desafiadora para nós.

E vamos lá, atravessar 2015 cagando e andando de todas as formas positivas que encontrarmos.

Abençoados sejam!
Corvo Negro

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O DIA SEGUINTE

A gente sempre sente algo diferente em Dezembro. Vem uma sensação de que tudo está prestes a mudar, uma vontade de ver tudo diferente do que já foi, uma esperança de que algo novo vai acontecer, que chega ao ápice no otimismo da noite da virada de ano, como se os fogos de artifício fossem gatilhos sendo disparados em nossa vida. Mas olhando friamente, é só mais um espaço de tempo como todos os outros. E Dezembro passa. E chega o dia 1 de Janeiro. E ele é como todos os outros dias. Voltamos à rotina e continuamos como se nada tivesse acontecido, pois não aconteceu. Não passou um cometa mágico que varresse todos os dilemas e transtornos, não amanhecemos numa outra vida. Porque, de fato, do lado de fora nada muda mesmo. O Sol vai nascer e se pôr no mesmo lugar. E, no final das contas, todas aquelas coisas maravilhosas que passaram por dentro da gente terão sido apenas uma ilusão momentânea, terão sido desperdiçadas pelo retorno automático à vida mecânica, e nossas esperanças se frustrarão num alvo vazio.

Mas a gente também pode olhar pra isso com outros olhos. Olhar para essa coisa que paira no ar no final do ano como uma mola propulsora para algo, como um tempo de preparação para um momento importante, encarando a mudança de ano como um rito de passagem dos nossos tempos. Aí é que a mágica realmente acontece: Quando a gente se dispõe a determinar que aquele momento será de fato um marco na nossa vida e a encarar o que vem depois como um livro em branco, pronto para ser escrito com uma história nova. E, como escritores, inventar um enredo novo, um personagem novo, um desfecho novo que não tenha nada a ver com o livro anterior, dá-lo por encerrado e abrir novas possibilidades. Como nos ritos de passagem dos tempos antigos, fazer um novo acordo consigo mesmo diante da vida, estabelecer novos compromissos, e levar à sério o momento do rito de passagem como um divisor de águas, em que uma criança se torna adulto e abandona definitivamente sua postura antiga para abraçar um outro patamar de atitude.

O grande presente da mudança de ano é celebrar esse rito de passagem sem esperar que o divisor de águas venha de fora, da folha do calendário ou de alguma força misteriosa que mova as coisas de fora para dentro; é aceitar que esse momento se tornará um rito de passagem e um divisor de águas diante da nossa decisão de fazer com que ele seja isso. Já viraram ma espécie de piada da nossa cultura as “promessas de fim de ano” que nunca se cumprem. É quando elas não se cumprem que as coisas continuam iguais, que a mesma história é recontada por mais um ano, que nossas esperanças se frustram diante da repetição. Não levamos mais à sério os ritos de passagem, não fazemos mais compromissos conosco diante da vida e das pessoas que são importantes para nós, não abandonamos mais o velho para abraçar o novo, não damos mais valor aos momentos que podem ser grandes marcos na nossa história.

Mas por quê? Será que nos condicionamos e nos acostumamos com a repetição a ponto de não querer realmente as mudanças da vida? Será que nos basta apenas um mês de otimismo e ilusão para sustentar a mesma história e os velhos compromissos por mais um ano?

Não sei. O que eu sei é que, quando desejo um feliz ano novo, estou desejando que ele seja novo, que ele seja um rito de passagem, que ele seja um divisor de águas, e que haja um compromisso em levar à sério os acordos consigo mesmo. É o que desejo para mim, é o que desejo para todos. Que tenhamos suficiente importância em nosso próprio contexto para fazer valer a palavra dada a nós mesmos no final do ano. Nada pode ser mais transformador do que isso.


Abençoados sejam! Um feliz ano novo!
Corvo Negro