Como qualquer mulher, as deusas
envelhecem. Diante dos ciclos da Lua e dos ciclos das estações, seguindo a Roda
do Ano, elas nascem, crescem, envelhecem. No inverno e na Lua Nova, estão
reclusas em si mesmas, gestando-se, e são o Vazio. Na primavera e na Lua
Crescente, florescem como jovens musas, são caçadoras, virgens guerreiras. No
verão e na Lua Cheia, são iniciadas no mistério da Criação e da vida e
tornam-se mães. No outono e na Lua Minguante, são iniciadas na sabedoria e na
Morte, tornam-se anciãs. E neste momento de sua trajetória são chamadas de
“Deusas Sujas”. Não porque sejam realmente sujas, mas pela concepção de que a
malícia e a sabedoria são características negativas nas mulheres, e de que o
prazer e a alegria são pecados e devem ser evitados, de que tudo o que remeta à
liberdade e ao prazer é “sujo”.
Rejeitadas e condenadas ao
subterrâneo, à vida eremita e selvagem, elas vêm curar através da malícia, da
irreverência; elas ensinam a curar-se através do prazer. Quando estamos no
fundo do poço, cegados pela escuridão de nossa própria mente, afogados pela
nossa própria miséria, enterrados em nosso inferno particular, consumidos por
nossa rotina física e mental mecânica, elas aparecem. São como uma luz sutil no
fim de um longo túnel, uma suave brisa, um leve cutucão capaz de nos despertar
se estivermos dispostos a parar nossa autocomiseração por um segundo e prestar
atenção ao seu movimento, que de tão leve às vezes passa despercebido. Sua
influência vem nos lembrar de quanto tudo é efêmero, vem acordar a criança
interior de seu pesadelo, vem despertar a nossa capacidade de driblar a
escuridão com uma simples, singela e altamente repolarizante risada. Sim,
daquelas que fazem tremer a barriga, que fazem ecoar nossa voz pelas paredes do
nosso submundo mental e emocional, capaz de quebrar a cadeia de supervalorização
que o ego cria em torno de si mesmo – supervalorização dos problemas,
supervalorização de si mesmo, supervalorização do sofrimento: um muro intransponível
de drama que se interpõe entre nós e a realidade externa, onde a vida continua
e as soluções passam sem que possamos ver. Por viverem no subterrâneo, as
deusas sujas conseguem atravessá-lo por baixo. Por serem selvagens, não temem o
que há do outro lado. Por serem velhas, possuem a sabedoria e têm a concessão
dada aos velhos de extrapolar os limites sociais, de tocar o ponto-chave
através de formas surpreendentes, inusitadas e inaceitáveis. E, com sua
irreverência, com sua malícia, com sua desimportância, com sua liberdade,
soltam em nossos ouvidos um sussurro jocoso, irônico, da piada mais suja que
seja possível àquele momento. E, ao rirmos, ao darmos a gargalhada fatal,
quebramos por um instante a cadeia do ego, onde tudo é escuro, seco e doloroso.
É o presente de um milímetro cúbico de oportunidade para passar, numa fração de
segundo, do extremo da auto-importância, do sofrimento e da escuridão ao
extremo do abandono, do prazer e da liberdade.
Hoje, a ciência comprova que o riso
verdadeiro, a gargalhada espontânea e vibrante, mexe com nossos
neurotransmissores e altera nossa saúde mental e física. Nossos ancestrais
sabiam disso intuitivamente: o riso cura, porque rir dá prazer mental,
emocional e físico, e o prazer muda nossa predisposição de espírito, qualquer
que seja o motivo da dor ou seu grau de intensidade. Numa época como a nossa,
em que tudo é levado tão à sério, a ferro e fogo, desde as grandes questões
práticas como religião e profissão até as mais simples coisas do cotidiano,
rimos pouco e quase sempre damos um sorriso social, facial apenas, sem prazer,
pois dada a seriedade da vida, nos acostumamos a fazer tudo sem prazer, por
obrigação, com profunda deferência e sob muito peso e pressão. No fundo, é
nosso ego que sorri para dizer que entendeu a piada – e fazemos poucas, rimos
das piadas pré-fabricadas que são repetidas dúzias de vezes, quando na verdade
o que precisamos é rir de nós mesmos, de nossa própria seriedade, de nossas
próprias crenças, e rir com sinceridade, rir de nós, por nós e para nós, e não
para as pessoas que nos cercam. As deusas sujas aparecem quando nossa seriedade
se torna uma crença e um hábito determinante que nos aprisiona, e fazem piada
da nossa dor, com tanta maestria, com tamanha audácia e tão profunda malícia,
que tudo o que podemos fazer é rir, antes mesmo que o ego se ofenda. Mesmo
porque, ao rirmos, ele imediatamente é retirado do comando. Elas, as portadoras
do “obsceno sagrado”, fazem da palavra seu instrumento de poder, com o qual
alteram o estado de consciência humano, pois “falam com o ventre”, no sentido
de que sua sabedoria é uterina, ancestral e refinada, e permite que suas
palavras brotem de seu mais profundo instinto sem serem medidas, são sentidas e
pronunciadas e têm um grande poder curativo, pois nos conduzem a um estado
primitivo de naturalidade – o relaxamento físico e psíquico.
Esse é um chamado para as mulheres,
pois esta porção da feminilidade, a porção sábia, instintiva e “suja”, foi
completamente enterrada pelas crenças do passado e está sendo decomposta pelos
hábitos do presente, mas pode ser resgatada para a saúde do futuro. O resgate
dos atributos femininos tem sido de grande valor para nosso tempo, e esta
parcela em especial é de grande valor para o momento que o ser humano vive hoje,
e para cada mulher individualmente age como uma ferramenta libertadora e
aglutinadora de sua integridade. E é também um recado para os homens, pois
estes também precisam tomar o remédio obsceno e divertido que a energia
feminina guarda em seu aspecto mais selvagem e ancestral, e também mais
censurado. Para isso, precisam abandonar os preconceitos e medos impostos por
tanto tempo dentro de nossa cultura com relação à porção lasciva, selvagem e
livre presente na mulher. Recebam ambos a inspiração das deusas sujas. Cada vez
que alguém solta uma piada obscena, uma frase condenável, uma tirada vergonhosa
ou um comentário “sujo” que traz à tona a gargalhada, as deusas sujas estão
presentes, sussurrando nos ouvidos de quem percebe a sutileza e está aberto
para a cura, soltando-lhes a língua antes que percebam. Respeitem-nas, são
anciãs e têm idade para serem bisavós. Riam com elas, aprendam com elas,
curem-se com elas. Mais do que isso, resgatem-nas. No outono e na Lua Nova,
chamem-nas. Tirem-nas do subterrâneo e da vida eremita, tragam-nas para casa,
deixem-nas falar com o ventre sobre a obsolescência do agora e sobre os ciclos
que tornam tudo passageiro, sem importância e digno de um bom sarro.
Imagino que o título deste texto
tenha feito parecer que estaríamos falando sobre assuntos sérios como
Khundalini, sexo sagrado ou algo do gênero. É que elas me sopraram este título,
e neste momento estão rindo da nossa falta de malícia para entender que o sexo
não é sujo, e que o riso às vezes pode ser mais curativo do que qualquer ritual
elaborado. Ouço o riso delas, riem de nós, riem da nossa falta de imaginação,
riem do nosso mau humor, e riem porque não levamos o riso à sério.
Abençoados sejam!