terça-feira, 21 de outubro de 2014

AS DEUSAS SUJAS E A CURA ATRAVÉS DO PRAZER

Como qualquer mulher, as deusas envelhecem. Diante dos ciclos da Lua e dos ciclos das estações, seguindo a Roda do Ano, elas nascem, crescem, envelhecem. No inverno e na Lua Nova, estão reclusas em si mesmas, gestando-se, e são o Vazio. Na primavera e na Lua Crescente, florescem como jovens musas, são caçadoras, virgens guerreiras. No verão e na Lua Cheia, são iniciadas no mistério da Criação e da vida e tornam-se mães. No outono e na Lua Minguante, são iniciadas na sabedoria e na Morte, tornam-se anciãs. E neste momento de sua trajetória são chamadas de “Deusas Sujas”. Não porque sejam realmente sujas, mas pela concepção de que a malícia e a sabedoria são características negativas nas mulheres, e de que o prazer e a alegria são pecados e devem ser evitados, de que tudo o que remeta à liberdade e ao prazer é “sujo”.
Rejeitadas e condenadas ao subterrâneo, à vida eremita e selvagem, elas vêm curar através da malícia, da irreverência; elas ensinam a curar-se através do prazer. Quando estamos no fundo do poço, cegados pela escuridão de nossa própria mente, afogados pela nossa própria miséria, enterrados em nosso inferno particular, consumidos por nossa rotina física e mental mecânica, elas aparecem. São como uma luz sutil no fim de um longo túnel, uma suave brisa, um leve cutucão capaz de nos despertar se estivermos dispostos a parar nossa autocomiseração por um segundo e prestar atenção ao seu movimento, que de tão leve às vezes passa despercebido. Sua influência vem nos lembrar de quanto tudo é efêmero, vem acordar a criança interior de seu pesadelo, vem despertar a nossa capacidade de driblar a escuridão com uma simples, singela e altamente repolarizante risada. Sim, daquelas que fazem tremer a barriga, que fazem ecoar nossa voz pelas paredes do nosso submundo mental e emocional, capaz de quebrar a cadeia de supervalorização que o ego cria em torno de si mesmo – supervalorização dos problemas, supervalorização de si mesmo, supervalorização do sofrimento: um muro intransponível de drama que se interpõe entre nós e a realidade externa, onde a vida continua e as soluções passam sem que possamos ver. Por viverem no subterrâneo, as deusas sujas conseguem atravessá-lo por baixo. Por serem selvagens, não temem o que há do outro lado. Por serem velhas, possuem a sabedoria e têm a concessão dada aos velhos de extrapolar os limites sociais, de tocar o ponto-chave através de formas surpreendentes, inusitadas e inaceitáveis. E, com sua irreverência, com sua malícia, com sua desimportância, com sua liberdade, soltam em nossos ouvidos um sussurro jocoso, irônico, da piada mais suja que seja possível àquele momento. E, ao rirmos, ao darmos a gargalhada fatal, quebramos por um instante a cadeia do ego, onde tudo é escuro, seco e doloroso. É o presente de um milímetro cúbico de oportunidade para passar, numa fração de segundo, do extremo da auto-importância, do sofrimento e da escuridão ao extremo do abandono, do prazer e da liberdade.

Hoje, a ciência comprova que o riso verdadeiro, a gargalhada espontânea e vibrante, mexe com nossos neurotransmissores e altera nossa saúde mental e física. Nossos ancestrais sabiam disso intuitivamente: o riso cura, porque rir dá prazer mental, emocional e físico, e o prazer muda nossa predisposição de espírito, qualquer que seja o motivo da dor ou seu grau de intensidade. Numa época como a nossa, em que tudo é levado tão à sério, a ferro e fogo, desde as grandes questões práticas como religião e profissão até as mais simples coisas do cotidiano, rimos pouco e quase sempre damos um sorriso social, facial apenas, sem prazer, pois dada a seriedade da vida, nos acostumamos a fazer tudo sem prazer, por obrigação, com profunda deferência e sob muito peso e pressão. No fundo, é nosso ego que sorri para dizer que entendeu a piada – e fazemos poucas, rimos das piadas pré-fabricadas que são repetidas dúzias de vezes, quando na verdade o que precisamos é rir de nós mesmos, de nossa própria seriedade, de nossas próprias crenças, e rir com sinceridade, rir de nós, por nós e para nós, e não para as pessoas que nos cercam. As deusas sujas aparecem quando nossa seriedade se torna uma crença e um hábito determinante que nos aprisiona, e fazem piada da nossa dor, com tanta maestria, com tamanha audácia e tão profunda malícia, que tudo o que podemos fazer é rir, antes mesmo que o ego se ofenda. Mesmo porque, ao rirmos, ele imediatamente é retirado do comando. Elas, as portadoras do “obsceno sagrado”, fazem da palavra seu instrumento de poder, com o qual alteram o estado de consciência humano, pois “falam com o ventre”, no sentido de que sua sabedoria é uterina, ancestral e refinada, e permite que suas palavras brotem de seu mais profundo instinto sem serem medidas, são sentidas e pronunciadas e têm um grande poder curativo, pois nos conduzem a um estado primitivo de naturalidade – o relaxamento físico e psíquico.
Esse é um chamado para as mulheres, pois esta porção da feminilidade, a porção sábia, instintiva e “suja”, foi completamente enterrada pelas crenças do passado e está sendo decomposta pelos hábitos do presente, mas pode ser resgatada para a saúde do futuro. O resgate dos atributos femininos tem sido de grande valor para nosso tempo, e esta parcela em especial é de grande valor para o momento que o ser humano vive hoje, e para cada mulher individualmente age como uma ferramenta libertadora e aglutinadora de sua integridade. E é também um recado para os homens, pois estes também precisam tomar o remédio obsceno e divertido que a energia feminina guarda em seu aspecto mais selvagem e ancestral, e também mais censurado. Para isso, precisam abandonar os preconceitos e medos impostos por tanto tempo dentro de nossa cultura com relação à porção lasciva, selvagem e livre presente na mulher. Recebam ambos a inspiração das deusas sujas. Cada vez que alguém solta uma piada obscena, uma frase condenável, uma tirada vergonhosa ou um comentário “sujo” que traz à tona a gargalhada, as deusas sujas estão presentes, sussurrando nos ouvidos de quem percebe a sutileza e está aberto para a cura, soltando-lhes a língua antes que percebam. Respeitem-nas, são anciãs e têm idade para serem bisavós. Riam com elas, aprendam com elas, curem-se com elas. Mais do que isso, resgatem-nas. No outono e na Lua Nova, chamem-nas. Tirem-nas do subterrâneo e da vida eremita, tragam-nas para casa, deixem-nas falar com o ventre sobre a obsolescência do agora e sobre os ciclos que tornam tudo passageiro, sem importância e digno de um bom sarro.

Imagino que o título deste texto tenha feito parecer que estaríamos falando sobre assuntos sérios como Khundalini, sexo sagrado ou algo do gênero. É que elas me sopraram este título, e neste momento estão rindo da nossa falta de malícia para entender que o sexo não é sujo, e que o riso às vezes pode ser mais curativo do que qualquer ritual elaborado. Ouço o riso delas, riem de nós, riem da nossa falta de imaginação, riem do nosso mau humor, e riem porque não levamos o riso à sério.

Abençoados sejam!

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